O DECRETO DA ENCARNAÇÃO DO VERBO
"E ouvi a voz de quem dizia: Quem eu enviarei eu? e quem nos irá lá? Então disse eu: Aqui me tens a mim, envia-me." (Is 6,8)
Embora o Filho de Deus previsse a vida penosa que teria de levar, submeteu-se contudo de boa vontade ao decreto da Encarnação, ofereceu-se mesmo a fazer-se homem. E isso não é só afim de satisfazer plenamente a justiça divina, mas também para nos mostrar seu amor, e obrigar-nos a que o amemos sem reserva. Como é que até o dia de hoje temos respondido a tão grande beneficio?
Afigura-se a São Bernardo em sua contemplação sobre a condição do gênero humano depois do pecado do primeiro homem, ver travarem contenda a justiça divina e a misericórdia.
Estou perdida- diz a justiça- se Adão não for punido. A misericórdia, ao contrário, replica: Estou eu perdida se o homem não for perdoado. Em vista de tal contenda, o Senhor decide que, para salvar o homem réu de morte, há de morrer um inocente: Moriatur qui nihil debeat morti
Na terra, porém, não se achava um que fosse inocente. Portanto - disse o Pai Eterno- já entre os homens não há quem possa satisfazer a minha justiça, quem irá resgatar o homem? Os anjos, os querubins, os serafins, todos guardam silêncio, ninguém responde; Só responde o Verbo Eterno e diz: Ecce ego, mitte me - "Aqui me tens a mim, envia-me."
Meu Pai - diz o Filho Unigênito- a vossa majestade, por ser infinita, e ofendida pelo homem, não pode ser planamente satisfeita por um anjo, que é uma pura criatura. E ainda que Vos quisésseis contentar com as satisfações de um anjo, considere que, apesar de tantos benefícios prestados ao homem, apesar de tantas promessas e ameaças, não conseguimos ganhar o seu amor, porque até hoje não conheceu o amor que lhe tínhamos. Se quisermos obriga-lo irresistivelmente a amar-nos, que ocasião se nos pode deparar mais própria do que esta? Permiti que, para remir o homem, eu, vosso Filho, desça sobre a terra e tome a natureza humana; permiti que, pagando com a minha morte as penas devidas ao homem, satisfaça plenamente a vossa justiça divina, e o homem fique bem convencido do nosso amor.
Mas considera, meu Filho - assim torna o Pai- considera que, encarregando- te de pegar pelos homens, terás de levar uma vida toda de trabalhos, e os homens te pagarão com a mais negra ingratidão. Depois de teres vivido trinta anos como simples auxiliar de um pobre artífice, quando afinal saíres a pregar e a manifestar quem és, haverá, é verdade, uns poucos que te queiram seguir; mas a maior parte dos homens te desprezara, chamando-te impostor, feiticeiro, louco, samaritano, e finalmente te farão morrer ignominiosamente, exausto de tormentos, sobre um lenho infame.
Não importa- responde o Filho - a tudo me sujeito, contanto que seja salvo o homem: "Aqui me tens a mim, envia-me".
E assim foi decretado que o divino Filho se fizesse homem e redentor dos homens. Ó amor incompreensível de Deus! Mas como temos nós até este momento respondido a tão grande benefício?
Ó Verbo Eterno, Vós vos fizestes homem para nos remir e acender em nossos corações o divino amor; como foi possível que encontrásseis nos corações dos homens tão grande ingratidão? Vós nada poupastes para Vos fazer amado dos homens; chegastes a dar o vosso sangue e a vossa vida; como é que os homens se mostram tão ingratos para convosco? Ignoram-no por ventura? Não; sabem e creem que por eles viestes do céu para revestir-Vos de carne humana e tomar sobre Vós as nossas misérias; sabem que por amor deles levastes uma vida penosa e abraçastes uma morte ignominiosa: como vivem então assim esquecidos de Vós? Amam aos parentes, amam aos amigos, amam os próprios animais; somente para convosco são tão frios, tão ingratos.
Mas ai de mim! Acusando aqueles ingratos , acuso-me a mim próprio, que por pior do que os outros Vos tenho tratado. Anima-me, porém, a vossa bondade, que me tem tolerado tanto tempo afim de perdoar-me, contanto que eu queira arrepender-me ; pesa-me de toda a minha alma de Vos ter ofendido e quero amar-Vos de todo o meu coração. Reconheço, ó meu Redentor, que o meu coração já não merece mais ser por Vós aceito, visto que Vos tem deixado por amor as criaturas; mas vejo que, não obstante isso, Vós ainda o quereis, e eu, com todo o poder de minha vontade, Vo-lo dou e consagro. Abraçai-o, pois, todo em vosso santo amor, e fazei com que de hoje em diante não ame senão a Vós, bondade infinita, digna de infinito amor. Amo-Vos, Jesus meu, amo-Vos, meu sumo Bem, amo-Vos, ó amor único de minha alma. - Ó Maria, minha Mãe, vós, que sois a mãe do belo amor, impetrai-me a graça de amar o meu Deus; de vós a espero.
-Retirado do livro: Meditações para o Advento de Santo Afonso Maria de Ligório Tomo I
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